Já muitas histórias se escreveram sobre Manuel Machado.
Desde a sua paixão pelo andebol, primeira modalidade que praticou, até ao facto de nem o pai Machado, lendário guardião das redes vitorianas, ter sido capaz de o seduzir para o futebol. O Professor era um homem do desporto, versado em inúmeras modalidades, mas sem aquela centelha que os adeptos do desporto-rei cultivam em si.
Até que, a Guimarães, chegou o belga Goethals, um dos mais conceituados técnicos europeus, com uma extraordinária carreira no futebol belga mas a cumprir um castigo em virtude de ter "arranjado" uma partida do campeonato, de modo a que o seu Standard não se se cansasse muito antes de uma final europeia contra o Barcelona.
Com a reputação em baixa no seu país, Raymond La Science, como era conhecido em virtude dos seus incansáveis estudos sobre a ciência futebolística, aceitou o desafio de rumar a Portugal, ao Vitória, na temporada de 1984/85 com a esperança que neste rectângulo à beira-mar fosse merecedor de um indulto, que lhe permitisse sentar-se no banco de suplentes... um agravamento que jamais haveria de chegar.
Deslocado num país onde não se falava a sua língua, numa altura era a democratização das línguas estrangeiras em Portugal era uma miragem, o Vitória parecia ter trocado o problema do treinador pelo problema deste se fazer entender. Na verdade, o homem que haveria de ser seu adjunto, Djunga, também não se fazia entender na língua de Victor Hugo, pelo que urgia resolver a questão.
Tal seria resolvida do modo mais inesperado. Por acaso, antes do início da temporada, Manuel Machado teve assuntos a tratar no departamento de futebol do Vitória. Lá chegado, percepcionou o problema que era a comunicação entre Goethals e os demais componentes da estrutura. Quase uma Torre de Babel sem tradução possível e em que o professor se viu na obrigação de ajudar, ainda que "eu tinha um francês de liceu, mas algumas bases, ajudei um bocado na comunicação e ele disse: Ahhh é importante ficares comigo, vais me ajudar nesse sentido".
Assim, a equipa técnica ficaria constituída com Djunga a adjunto, e a figurar na ficha de jogo como treinador, enquanto Machado assumiu o papel de preparador-físico para encetar uma longa carreira no futebol vitoriano. Entretanto, tornar-se-ia no maior amigo do Velho Feiticeiro, como também era chamado, em Guimarães, já que "ia buscá-lo pela fresca ao hotel, depois preparavam o treino, iam almoçar, voltavam para outro treino e ia levá-lo de volta ao hotel".
Entretanto, ia absorvendo os conhecimentos de um dos mais lendários treinadores da história do futebol europeu, já que aprendeu com ele como utilizar o sistema de três centrais, já recorrente na Holanda e na Bélgica, mas pouco conhecido em Portugal. E nessas conversas, sempre o cigarro ao canto da boca, já que, como Manuel Machado confidenciou à Tribuna Expresso "muitas vezes não precisava de isqueiro, acendia um cigarro com outro e mantinha-o no canto da boca, a cinza ia caindo por ele abaixo na secretária, onde estivesse, não se preocupava com isso. A conversa fazia-se com o cigarro permanentemente no canto da boca. Fazia parte da imagem."
Mais do que isso, haveria de ser determinante no percurso de um homem que se sagrou campeão nacional de juniores, levou o Vitória por duas vezes a apuramentos europeus e a uma final da Taça de Portugal... graças ao destino que o fez, naquele dia, dar uma mãozinha a quem nada percebia de francês.